sábado, 10 de março de 2018

Astralízia.

Um conto para degustar enquanto tomam café.




Batiam três e vinte da madrugada.  A rua estava tão silenciosa e calma, como se em uma cidade como São Paulo não houvesse vida após a meia noite. O carro estava estacionado em uma viela apenas esperando. O que? Nem mesmo seus ocupantes sabiam. Os dois detetives, em tocaia, viam as horas passarem e entediavam-se com a espera, trocando ideias em um quase sussurro. Em algumas horas, seriam rendidos pelos colegas do dia e esperavam, pacientemente, que a noite continuasse assim, calma.
Riane esgueirou-se pelo beco, escondeu-se entre as latas de lixo, sem que percebesse o carro parado do outro lado da viela. Almejava que o cheiro horrível que o envolvia o camuflasse e o deixasse escapar da perseguição que os cães de Luther lhe faziam. Sentia seu coração quase à boca, sua respiração estava sem controle, seu corpo tremia diante da possibilidade de ser pego. Sabia que sua vida corria risco, mas nem mesmo a dor de uma tortura o faria abrir a boca. Antes, deixar-se-ia matar.
Virou sua atenção em direção à entrada da rua e estremeceu. Os cães fuçavam em perseguição ao seu cheiro e logo estariam perto. Eram cinco. Todos pareciam mais lobos do que simples animais de estimação. Riane sabia o que eles eram e não tinha nenhum modo de escapar. Engoliu em seco e encolheu-se ainda mais entre os latões, esperando passar despercebido pelos seus perseguidores. Se fizesse silêncio, talvez conseguisse.
— Riane!
Ele deu um pulo e, por pouco, não mostrou aos cães onde se encontrava.
— Eu o estou esperando... Meus cães sabem que você está escondido.
Riane quase riu de sua estupidez ao ouvir a voz de Luther em sua cabeça. Não ousou sequer pensar, apenas uma resposta, traria Luther imediatamente a ele e então, estaria irremediavelmente perdido.
— Faça por você Riane... Não me deixe com mais raiva do que estou.
Riane sentia Luther lutando contra o seu controle. Precisava ser forte e combater Luther com igual força. Afinal, ele não era um reles mago. Era tão ou quanto, em poder como o próprio Luther, apenas faltava-lhe as experiências dos séculos.
Encolheu-se mais ao perceber a aproximação de um dos cães e começou a sussurrar palavras desconexas, em uma língua há muito esquecida. Estava pronto para o que houvesse, quando parou estático, surpreso, ao ouvir um som agudo, seguido de um ganido e vários rosnados. Alguma coisa estava acontecendo.
Sentia ímpeto de olhar, persistiu no anonimato. Temia o que estava por ver.
Meia hora depois da acirrada luta, Riane ouviu passos vindo em sua direção e tentou esconder-se ainda mais, porem não tinha como. Em instantes, diante de seus olhos, viu dois pés cobertos por desgastados e horríveis sapatos. Não quis erguer seus olhos ao dono daquilo, porém sabia que não era Luther.
— Você está bem?
Com certeza aquela voz era humana.
— Ferido?
Ele negou com a cabeça.
— O que eram eles, Lucas?
Então, havia dois deles. Talvez mais.
— Agora você pode se levantar...
Riane finalmente ergueu os olhos a quem lhe falava e concordando com a cabeça, ergueu-se. Olhou por detrás do humano e examinou as cercanias. Dos cães, nenhum sinal. Apenas o corpo de um homem nu estendido mais próximo. Havia um buraco de bala em seu peito e outro, em sua testa. Provavelmente, mais morto do que qualquer outro que Riane vira. Se bem que em se tratado dos animais de Luther, nada era impossível.
— Não era um cão que eu abati?
O outro humano ainda articulava, espantado, enquanto chutava de leve a perna do então, defunto.
— Como vou explicar isto no relatório? Eu acho que estou enlouquecendo.
— Não está, não. Eu mesmo vi os cães fuçando tudo, procurando algo ou alguém, e acredito que estavam prontos a atacarem o nosso rapaz aqui. — e enquanto Lucas falava, fixava seus olhos inquietos e suspeitos sobre Riane. — O que ele era?
Não havia como Riane escapar daquela pergunta e dando de ombros, enquanto mantinha seus olhos ao derredor, num misto de alivio e preocupação, respondeu:
— É o que vocês chamam de lobisomem. É um homem-lobo de Luther.
Os dois homens pareciam aturdidos, contudo, calmos.
— Estas coisas não deveriam existir...
Ouviu Lucas sussurrar incrédulo.
— Existem muitas coisas que nunca deveriam existir. Luther é um deles. — respondeu de pronto Riane, adiantando-se até o morto e após se abaixar, tocando-o de leve, fê-lo sumir diante dos dois humanos.
— O quê?!
Riane ergueu-se, limpando a roupa com as mãos.
— Você mesmo disse que não tinha como explicar isto — falou com seriedade. —, estava tentando agradecer a ajuda que me deram.
— Como?
Riane desta vez olhou para Lucas.
— Absorvi a energia de seu corpo.
O homem franziu o cenho sem entender, e Riane não pretendia perder seu tempo, explicando isto aos dois humanos.
— Ei?! Para aonde pensa que vai?
Riane virou-se e olhou aos dois, preocupado.
— Preciso sair daqui. Os homens-lobos irão voltar. Eles nunca desistem. Ficaram surpresos com vocês... Agora já sabem como agir.  
Os dois humanos olharam ao redor.
— Você vai para aonde?
Na verdade, não tinha a menor ideia do que fazer. Precisava pensar, reagrupar suas ideias, e seguir uma nova diretriz.
— Você pode ir conosco.
— Lucas...
Riane viu que o parceiro de Lucas não estava nada satisfeito com aquele convite.
— Estamos de tocaia. — lembrou-o este.
— É verdade. — concordou Lucas.
Na verdade, eles não deveriam ter saído do carro sem um motivo certo. Haviam estragado o trabalho de duas semanas e não tinham como explicar o porquê da ação deles. Estavam fritos, os dois. Teriam muita gente caindo-lhes ao pescoço, começando pelo seu chefe.
— Vocês não devem voltar ao carro.
Os dois homens o olharam desconfiados.
— Agora vocês estão na mira de Luther.
Riane ainda encontrava-se a olhar ao derredor, apenas esperando, como se o simples fato de estar ainda ali fosse uma loucura.
— Vocês deveriam me acompanhar...
Lucas o olhou cismado.
— Acompanhar... Para aonde?!
Riane virou-se e fixou seus olhos azuis, da cor do céu, na face conturbada daquele humano.
— Vamos? Depois eu explico...
— E você pretende ir para aonde? Por acaso conhece São Paulo?
Na verdade, Riane conhecia.
— Então, me siga. 
E, esquecendo o que Riane havia dito, Lucas retornou ao carro, enquanto olhava o prédio em que deveria estar de vigília, pensando na desculpa que poderia arranjar diante daquele fiasco.
Não passou nem mesmo um minuto, depois que o carro deixava a viela, quando surgiu no beco um humano que pelo menos tinha a forma de um. Não se via muito dele devido à roupa que o cobria do pescoço aos pés. Seus cabelos negros corriam em suas costas, chegando próximo ao seu quadril. Seu porte, esguio, lhe dava uma estrutura sólida, magra. Contudo, o que o definia eram seus olhos de uma cor vermelha como fogo, de um brilho sinistro e maquiavélico. Ele ficou assim, quieto nas sombras, vendo o sol nascer atrás dos prédios. Repentinamente, virou-se e ficou escutando o silêncio que aos poucos morria diante do amanhecer. Estalou os dedos e esperou. Logo se viu rodeado por quatro cães, aqueles que haviam fugido dos humanos. Não disse nada, apenas fez singelo gesto com uma das mãos e, enquanto os homens-lobos uivavam de dor e desapareciam, mantinha o sorriso diabólico em seus lábios.
                                                          
⁂⁂⁂


Continua no próximo sábado...

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