Um conto para degustar enquanto tomam café.
Batiam
três e vinte da madrugada. A rua estava
tão silenciosa e calma, como se em uma cidade como São Paulo não houvesse vida
após a meia noite. O carro estava estacionado em uma viela apenas esperando. O
que? Nem mesmo seus ocupantes sabiam. Os dois detetives, em tocaia, viam as
horas passarem e entediavam-se com a espera, trocando ideias em um quase sussurro.
Em algumas horas, seriam rendidos pelos colegas do dia e esperavam, pacientemente,
que a noite continuasse assim, calma.
Riane
esgueirou-se pelo beco, escondeu-se entre as latas de lixo, sem que percebesse
o carro parado do outro lado da viela. Almejava que o cheiro horrível que o
envolvia o camuflasse e o deixasse escapar da perseguição que os cães de Luther
lhe faziam. Sentia seu coração quase à boca, sua respiração estava sem
controle, seu corpo tremia diante da possibilidade de ser pego. Sabia que sua
vida corria risco, mas nem mesmo a dor de uma tortura o faria abrir a boca. Antes,
deixar-se-ia matar.
Virou
sua atenção em direção à entrada da rua e estremeceu. Os cães fuçavam em perseguição
ao seu cheiro e logo estariam perto. Eram cinco. Todos pareciam mais lobos do
que simples animais de estimação. Riane sabia o que eles eram e não tinha nenhum
modo de escapar. Engoliu em seco e encolheu-se ainda mais entre os latões,
esperando passar despercebido pelos seus perseguidores. Se fizesse silêncio, talvez
conseguisse.
—
Riane!
Ele
deu um pulo e, por pouco, não mostrou aos cães onde se encontrava.
—
Eu o estou esperando... Meus cães sabem que você está escondido.
Riane
quase riu de sua estupidez ao ouvir a voz de Luther em sua cabeça. Não ousou sequer
pensar, apenas uma resposta, traria Luther imediatamente a ele e então, estaria
irremediavelmente perdido.
—
Faça por você Riane... Não me deixe com mais raiva do que estou.
Riane
sentia Luther lutando contra o seu controle. Precisava ser forte e combater
Luther com igual força. Afinal, ele não era um reles mago. Era tão ou quanto,
em poder como o próprio Luther, apenas faltava-lhe as experiências dos séculos.
Encolheu-se
mais ao perceber a aproximação de um dos cães e começou a sussurrar palavras
desconexas, em uma língua há muito esquecida. Estava pronto para o que houvesse,
quando parou estático, surpreso, ao ouvir um som agudo, seguido de um ganido e
vários rosnados. Alguma coisa estava acontecendo.
Sentia
ímpeto de olhar, persistiu no anonimato. Temia o que estava por ver.
Meia
hora depois da acirrada luta, Riane ouviu passos vindo em sua direção e tentou esconder-se
ainda mais, porem não tinha como. Em instantes, diante de seus olhos, viu dois
pés cobertos por desgastados e horríveis sapatos. Não quis erguer seus olhos ao
dono daquilo, porém sabia que não era Luther.
—
Você está bem?
Com
certeza aquela voz era humana.
—
Ferido?
Ele
negou com a cabeça.
—
O que eram eles, Lucas?
Então,
havia dois deles. Talvez mais.
—
Agora você pode se levantar...
Riane
finalmente ergueu os olhos a quem lhe falava e concordando com a cabeça, ergueu-se.
Olhou por detrás do humano e examinou as cercanias. Dos cães, nenhum sinal.
Apenas o corpo de um homem nu estendido mais próximo. Havia um buraco de bala
em seu peito e outro, em sua testa. Provavelmente, mais morto do que qualquer
outro que Riane vira. Se bem que em se tratado dos animais de Luther, nada era
impossível.
—
Não era um cão que eu abati?
O
outro humano ainda articulava, espantado, enquanto chutava de leve a perna do
então, defunto.
—
Como vou explicar isto no relatório? Eu acho que estou enlouquecendo.
—
Não está, não. Eu mesmo vi os cães fuçando tudo, procurando algo ou alguém, e
acredito que estavam prontos a atacarem o nosso rapaz aqui. — e enquanto Lucas
falava, fixava seus olhos inquietos e suspeitos sobre Riane. — O que ele era?
Não
havia como Riane escapar daquela pergunta e dando de ombros, enquanto mantinha
seus olhos ao derredor, num misto de alivio e preocupação, respondeu:
—
É o que vocês chamam de lobisomem. É um homem-lobo de Luther.
Os
dois homens pareciam aturdidos, contudo, calmos.
—
Estas coisas não deveriam existir...
Ouviu
Lucas sussurrar incrédulo.
—
Existem muitas coisas que nunca deveriam existir. Luther é um deles. —
respondeu de pronto Riane, adiantando-se até o morto e após se abaixar,
tocando-o de leve, fê-lo sumir diante dos dois humanos.
—
O quê?!
Riane
ergueu-se, limpando a roupa com as mãos.
—
Você mesmo disse que não tinha como explicar isto — falou com seriedade. —, estava
tentando agradecer a ajuda que me deram.
—
Como?
Riane
desta vez olhou para Lucas.
—
Absorvi a energia de seu corpo.
O
homem franziu o cenho sem entender, e Riane não pretendia perder seu tempo,
explicando isto aos dois humanos.
—
Ei?! Para aonde pensa que vai?
Riane
virou-se e olhou aos dois, preocupado.
—
Preciso sair daqui. Os homens-lobos irão voltar. Eles nunca desistem. Ficaram
surpresos com vocês... Agora já sabem como agir.
Os
dois humanos olharam ao redor.
—
Você vai para aonde?
Na
verdade, não tinha a menor ideia do que fazer. Precisava pensar, reagrupar suas
ideias, e seguir uma nova diretriz.
—
Você pode ir conosco.
—
Lucas...
Riane
viu que o parceiro de Lucas não estava nada satisfeito com aquele convite.
—
Estamos de tocaia. — lembrou-o este.
—
É verdade. — concordou Lucas.
Na
verdade, eles não deveriam ter saído do carro sem um motivo certo. Haviam estragado
o trabalho de duas semanas e não tinham como explicar o porquê da ação deles.
Estavam fritos, os dois. Teriam muita gente caindo-lhes ao pescoço, começando
pelo seu chefe.
—
Vocês não devem voltar ao carro.
Os
dois homens o olharam desconfiados.
—
Agora vocês estão na mira de Luther.
Riane
ainda encontrava-se a olhar ao derredor, apenas esperando, como se o simples fato
de estar ainda ali fosse uma loucura.
—
Vocês deveriam me acompanhar...
Lucas
o olhou cismado.
—
Acompanhar... Para aonde?!
Riane
virou-se e fixou seus olhos azuis, da cor do céu, na face conturbada daquele humano.
—
Vamos? Depois eu explico...
—
E você pretende ir para aonde? Por acaso conhece São Paulo?
Na
verdade, Riane conhecia.
—
Então, me siga.
E, esquecendo o que
Riane havia dito, Lucas retornou ao carro, enquanto olhava o prédio em que
deveria estar de vigília, pensando na desculpa que poderia arranjar diante
daquele fiasco.
Não
passou nem mesmo um minuto, depois que o carro deixava a viela, quando surgiu
no beco um humano que pelo menos tinha a forma de um. Não se via muito dele devido
à roupa que o cobria do pescoço aos pés. Seus cabelos negros corriam em suas
costas, chegando próximo ao seu quadril. Seu porte, esguio, lhe dava uma
estrutura sólida, magra. Contudo, o que o definia eram seus olhos de uma cor
vermelha como fogo, de um brilho sinistro e maquiavélico. Ele ficou assim,
quieto nas sombras, vendo o sol nascer atrás dos prédios. Repentinamente, virou-se
e ficou escutando o silêncio que aos poucos morria diante do amanhecer. Estalou
os dedos e esperou. Logo se viu rodeado por quatro cães, aqueles que haviam
fugido dos humanos. Não disse nada, apenas fez singelo gesto com uma das mãos
e, enquanto os homens-lobos uivavam de dor e desapareciam, mantinha o sorriso
diabólico em seus lábios.
⁂⁂⁂
Continua no próximo sábado...